domingo, 17 de agosto de 2025

O vinho que sabe meu nome

Aniversário. Para alguns, celebração; para outros, um lembrete silencioso de que o tempo avança sem fazer concessões. Ele segue, implacável, e não devolve os dias que leva. Há quem receba a data com euforia. Eu a atravesso com a serenidade de quem, há tempos, caminha pela mesma trilha discreta.


O dia foi simples: passos lentos pela cidade, um almoço em silêncio, pensamentos dispersos. Entre um instante e outro, uma constatação que não é nova, mas se reafirma: vivemos numa era em que o julgamento se apoia mais na superfície do que na essência. É uma pressa para concluir, para decidir, para eleger o que importa — tudo filtrado pela aparência. E, nesse filtro, perde-se muito do que realmente conta. Não é apenas uma questão de idade, mas de um ritmo que privilegia o imediato em detrimento do consistente.


Mais tarde, refugiei-me no piano. Horas inteiras de música, só eu, as teclas e um pouco de vinho branco, como se o tempo suspendesse sua tirania. O som preenchia o espaço, e naquele momento pouco importava quantos aniversários já haviam passado. Não houve festa, mas houve música. Não houve coro, mas o vinho sabia meu nome.


Com o avançar dos anos, a vida revela contornos que a juventude suaviza: o amor quase sempre exige aparência, a ausência de filhos pode ser liberdade ou abandono, a velhice traz consigo um inventário de perdas e a solidão, quando não escolhida, veste-se de independência. Ainda assim, persiste um espaço íntimo onde as pequenas epifanias resistem: a melodia que se encaixa perfeita, o gole que chega no ponto certo, a percepção de que, mesmo sem plateia, existe beleza em permanecer.


Talvez seja esse o verdadeiro legado de cada ano que se encerra: a capacidade de cultivar momentos que não precisam de validação alheia, mas que, no silêncio, registram o esforço de continuar vivo.


No more Sigh

quarta-feira, 14 de maio de 2025

Entre a Lua e o Sol

 


Sem grandes pretensões — talvez em busca de ar ou apenas de um pouco de silêncio antes do dia começar, olhei para o céu ao final da madrugada. Mas o que encontrei foi um presente: de um lado, a lua ainda firme no céu, discreta em seu posto noturno. Do outro, o sol rasgando o horizonte, tímido e ainda morno. Era como se o mundo não tivesse decidido se ainda era noite ou já era dia. E eu, ali no meio, suspenso.


Lembrei de Ismália, o poema de Alphonsus Guimarães. Da mulher que, ao ver a lua no céu e no mar, enlouquece de tanto desejar o inatingível. Ela queria tudo: o alto e o fundo, o brilho e o abismo. E como não coube em si, lançou-se — sua alma subindo ao céu, seu corpo descendo ao mar.


Mas hoje, diferente de Ismália, eu só contemplei. Não quis voar, nem cair. Apenas vi. E ver foi suficiente.


Há dias em que a beleza não nos exige um gesto. Só presença.